Instituições bancárias responsabilizadas por “golpes” sofridos por seus clientes: faz sentido?

Os bancos possuem papel importantíssimo na economia popular, no desenvolvimento das empresas, no empreendedorismo, na implementação e propagação de programas sociais, na segurança das movimentações financeiras e em mais uma infinidade de situações.  

Tal papel, entretanto, é acompanhado de uma grande responsabilidade, tendo em vista que os bancos assumem um papel de depositários de grandes volumes de capital 

que pertencem a terceiros, tendo a missão de liberar o acesso a este capital apenas àquele que possui o direito de propriedade, no volume correto.

Desde o século VII a.c., quando se estima ter sido inventada a moeda (antes disso, o comércio era basicamente fundado no escambo)[1], todo aquele que concentrasse um grande volume de capital estaria suscetível a fraudes, furtos e roubos. 

Transações tipicamente bancárias começaram a surgir imediatamente após a disseminação da moeda, tornando o dinheiro efetivamente uma mercadoria e não apenas um meio de atribuir valor adequado às mercadorias.

No século XV d.c., em 1406, foi criado na cidade de Gênova o Banco di San Giorgio, o primeiro banco nos moldes modernos[2]. Já em 1983, o Banco da Escócia foi o primeiro banco a oferecer serviços eletrônicos[3] e com estes surgiram também as fraudes de toda espécie, além das já constantes fraudes e roubos que não dependiam de abertura eletrônica.

Por óbvio, a adesão ao oferecimento de serviços eletrônicos pelos bancos foi maciça e segue crescente até os dias atuais. Afinal, apesar do surgimento das fraudes bancárias eletrônicas, as reduções de custos com folha salarial (o autoatendimento dispensa atendentes, por exemplo), com transferência física de valores (transações eletrônicas dispensam transações físicas) e com o aumento do rendimento decorrente do aumento da utilização de serviços bancários (é cada vez mais simples e fácil contratar eletronicamente serviços), promovidas pela adoção da tecnologia, superam e muito os prejuízos dos golpes.

Cabe ressaltar que tais prejuízos se mantém sob controle devido às medidas de segurança que diariamente são adotadas e atualizadas pelas instituições, em uma batalha incessante.

Pensando nisso, tais instituições passaram a investir constantemente em tecnologias e medidas de segurança que visam reduzir drasticamente, se não extinguir, operações fraudulentas e que tragam insegurança ou prejuízos aos seus clientes, bem como buscam impossibilitar o roubo de tais valores de forma física. 

Pois bem: Até que ponto o banco é responsável pelas operações realizadas sem consentimento, ou pela fraude da qual seu cliente é vítima?

O questionamento acima não se refere a ataques cibernéticos diretos nos servidores do banco ou roubos a caixas eletrônicos, onde obviamente sequer cabe discussão: o banco deve absorver os prejuízos e não pode repassá-los aos seus clientes.

Mas e quando a subtração de valores é realizada com a participação do cliente, como em caso de extorsão mediante sequestro, instalação de vírus no computador do cliente, golpes feitos por telefone e etc?

Para responder à pergunta acima, é necessária uma análise bem aprofundada do caso concreto, aplicando-se o código de defesa do consumidor[4] e demais normas pertinentes.

O código civil brasileiro trata do depositário nos artigos 627 ao 646. Apesar de sabermos que os contratos de abertura e manutenção de conta corrente ou de poupança se submetem, em regra, ao regime do código de defesa do consumidor, para realizarmos uma análise sistemática e teleológica do tema proposto, começaremos pela análise do código civil. 

Pois bem, analisemos o que dispõe os artigos mais relevantes deste diploma quanto à responsabilidade do depositário[5]:

Art. 627. Pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto móvel, para guardar, até que o depositante o reclame.

(…)

Art. 629. O depositário é obrigado a ter na guarda e conservação da coisa depositada o cuidado e diligência que costuma com o que lhe pertence, bem como a restituí-la, com todos os frutos e acrescidos, quando o exija o depositante.

(…)

Art. 640. Sob pena de responder por perdas e danos, não poderá o depositário, sem licença expressa do depositante, servir-se da coisa depositada, nem a dar em depósito a outrem.

Parágrafo único. Se o depositário, devidamente autorizado, confiar a coisa em depósito a terceiro, será responsável se agiu com culpa na escolha deste.

(…)

Art. 642. O depositário não responde pelos casos de força maior; mas, para que lhe valha a escusa, terá de prová-los.

(…)

Verifique-se que nos termos do código civil, o depositário apenas é responsável se entregar o bem a terceiro sem consentimento do depositante, ou se agir com culpa nesta entrega.

Para correto entendimento do texto acima, para que exista culpa, é necessário que esteja presente a negligência, a imprudência ou a imperícia na conduta (ação ou omissão) do depositário, caso contrário não haverá culpa.

Ocorre que como dito acima, o código civil não é a regra predominante nos contratos bancários, devendo ser observado o código de defesa do consumidor. Afinal, nos termos deste mesmo código, indiscutivelmente o banco é enquadrado como fornecedor e o cliente é enquadrado como consumidor:

Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.

§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

É evidente, na simples leitura do § 2º, do artigo 3º do CDC, que a instituição bancária é fornecedora de serviço. Entretanto, grande discussão se desenvolveu acerca da identificação do indivíduo que pode ou não ser considerado consumidor. É determinante para tal enquadramento a verificação do elo final da cadeia de consumo.

Neste sentido, se o utilizador do produto ou serviço o contrata para satisfação de necessidade individual (seja pessoa física ou pessoa jurídica), como destinatário final, sem o repassar para terceiros a qualquer título, ou agregar ao seu produto em sua cadeia de produção, será considerado consumidor.

Enquadrada a relação no manto do código de defesa do consumidor, pela presença tanto do fornecedor quanto do consumidor, ficará evidente que a responsabilização do fornecedor não mais dependerá de culpa.

Verifiquemos o que determinam os mais relevantes dispositivos do código de defesa do consumidor para esta matéria:

         Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

        § 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:

        I – o modo de seu fornecimento;

        II – o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;

        III – a época em que foi fornecido.

        § 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas.

       § 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:

        I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;

        II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

(…)

          Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:

        I – a reexecução dos serviços, sem custo adicional e quando cabível;

        II – a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;

        III – o abatimento proporcional do preço.

        (…)

        Art. 23. A ignorância do fornecedor sobre os vícios de qualidade por inadequação dos produtos e serviços não o exime de responsabilidade.

        Art. 24. A garantia legal de adequação do produto ou serviço independe de termo expresso, vedada a exoneração contratual do fornecedor.

        Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas seções anteriores.

        § 1° Havendo mais de um responsável pela causação do dano, todos responderão solidariamente pela reparação prevista nesta e nas seções anteriores.

(…)

        Art. 34. O fornecedor do produto ou serviço é solidariamente responsável pelos atos de seus prepostos ou representantes autônomos.

(…)

        Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.

(…)

Art. 101. Na ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços, sem prejuízo do disposto nos Capítulos I e II deste título, serão observadas as seguintes normas:

        I – a ação pode ser proposta no domicílio do autor;

(…)

Há que se observar que do todo se extrai que o fornecedor se responsabiliza, sem maiores considerações, pelo simples risco do negócio. O simples fato de prestar um serviço, faz com que o fornecedor seja responsável pelos danos que a atividade em si possa causar.

Assim, não precisa haver culpa do fornecedor (imprudência, negligência, imperícia) para que o dano seja sua responsabilidade: Basta que sua conduta (ação ou omissão), ou o mero exercício regular de sua atividade resulte em um dano ao consumidor. Por isso, cabe ao fornecedor provar (inversão do ônus da prova) que o serviço não tenha sido contratado e prestado, que o dano inexiste ou, existindo, tenha sido causado pela culpa exclusiva da vítima ou de terceiro[6].

Mas como enquadrar tudo o que foi explicado acima às relações decorrentes de contratos de abertura e manutenção de contas bancárias?

Ora, apesar de serem convenientes para o consumidor, os serviços bancários e as facilidades oferecidas visam a obtenção de mais e mais clientes e mais e mais lucro. 

Por um lado, quanto mais fácil e descomplicado for para movimentar o dinheiro, mais atrativo para o cliente e mais clientes vão se interessar pelos serviços bancários. Por outro lado, quanto mais difícil e burocrática a movimentação, maiores as garantias de segurança, mas menos pessoas se interessarão pelos serviços.

Neste sentido, é interesse do banco facilitar as transações, porém, ao ser responsabilizado pelas fraudes, se preocupará em garantir a segurança no acesso ao dinheiro e na adequada utilização de sua estrutura. 

É, portanto, obrigação da instituição bancária apenas implementar as facilidades dotadas de garantias suficientes de segurança, sob pena de falharem na adequada identificação do titular da conta e consequentemente, falharem em sua função de depositárias.

Além disso, cabe à instituição bancária promover a adequada identificação civil de todos os indivíduos que acessam seus serviços, caso contrário, tais indivíduos poderiam utilizar a estrutura da instituição para cometerem crimes sem serem identificados e sem sequer sair de casa.

Ora, diversos crimes passaram a ser possíveis em decorrência da existência dos serviços bancários: caixas eletrônicos, cartões de crédito, internet banking e etc.

O sequestro relâmpago, onde o criminoso rende a vítima e a conduz a diversos caixas eletrônicos, para promover saques mediante ameaça é um exemplo disso. Se os bancos não disponibilizassem caixas eletrônicos, a conduta descrita não seria possível, pelo menos não nos moldes descritos.

Compete então ao banco tomar medidas para evitar o uso desta facilidade no cometimento de crimes? Certamente! Mas convenhamos que a instituição bancária somente investirá em segurança se for responsabilizada pela ocorrência do dano.

Um golpe telefônico, onde o criminoso se passa por um familiar da vítima e a engana para que realize transferências bancárias não será, ordinariamente, responsabilidade do banco. Mas avaliando mais a fundo a questão, levando em consideração que o golpe só é possível porque o banco disponibiliza o serviço de transferência eletrônica, caso o banco concorra de alguma forma para facilitar o golpe, este deve e será responsabilizado.

É a hipótese de o banco, devido a uma falha em seu serviço, facilitar o uso de sua estrutura para o cometimento do crime. Ocorre, por exemplo, no caso de as contas bancárias utilizadas para depósito do fruto do crime serem abertas com documentos falsos, em nome de pessoas que nunca sequer movimentaram a conta, ou de não ser respeitado o limite diário de movimentações da conta[7].

Afinal, o criminoso provavelmente não aplicaria o golpe se tivesse que usar uma conta em seu próprio nome, pois seria facilmente descoberto e indiciado. Desta forma, a quadrilha abre contas bancárias em nome de terceiros, que sequer têm conhecimento de tais contas, e as utilizam para recebimento do fruto de seus crimes.

Ora, se o banco tivesse prestado adequadamente seu serviço, não teria aberto contas em nome de laranjas, com documentos falsos. Se o limite de movimentações diárias fosse respeitado, o dano seria contido também.  Consequentemente, o crime praticado seria impossibilitado ou ao menos limitado.

Em nome da segurança, analisando caso a caso, em valores muito altos e muito diferentes das transações costumeiras do cliente, instituições bancárias impedem a transferência imediata, mesmo que presencial, exigindo aviso prévio de alguns dias para efetivação da transação.

Cabe uma reflexão: A vítima transferiu o dinheiro diretamente para as contas indicadas pelo criminoso, então também tem culpa no dano, ocorre que a lei consumerista determina que o fornecedor apenas se exime da responsabilidade pelo dano se provar culpa exclusiva da vítima[8], mas não a culpa concorrente.

Neste sentido, parece evidente que se o evento determinante para ocorrência do crime em questão tem a efetiva participação da instituição bancária, esta deve ser responsabilizada, mesmo que a vítima também seja culpada.

Por outro lado, em uma situação hipotética em que o banco tenha prestado adequadamente todos os seus serviços, sem qualquer falha na utilização de sua estrutura ou no cumprimento de suas obrigações de segurança e a culpa do dano seja exclusivamente da vítima, a instituição bancária não deve ser responsabilizada apenas por existir ou por prestar seus serviços.

É o caso de um golpe de valor inferior ao limite de transações diárias, aplicados sem utilização de contas bancárias abertas com documentos falsos e sem qualquer facilitação da instituição bancária.

Fato é que responsabilizar as instituições bancárias as faz melhorar, gerando um proveito imensurável para a sociedade e uma melhora considerável na qualidade e segurança das transações bancárias, pois instituições extremamente lucrativas e poderosas, temendo serem responsabilizadas pelos danos sofridos por seus clientes, passam a investir em novas tecnologias capazes de identificar adequadamente o detentor do direito de propriedade sobre o dinheiro depositado (como a utilização da biometria e do microchip no cartão), bem como garantir que suas transações sejam realizadas de maneira consciente e livre de coerções. 

Assim, utilizado com moderação, o Código de defesa do consumidor é uma ferramenta poderosa e justa.

[1] Fonte: https://super.abril.com.br/cultura/como-surgiu-o-dinheiro/

[2] Fonte: http://www.ilcaffaro.com/bancodisangiorgio.php

[3] Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Banco

[4] CDC: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8078.htm

[5] CC: http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/leis/2002/L10406.htm

[6] Art. 14, § 3º do CDC

[7]As instituições bancárias impõem limites nos valores transacionados diariamente por seus clientes, que variam de acordo com as movimentações costumeiras de cada um. Assim, um cliente que transaciona apenas cerca de mil reais em alguns dias do mês, vai certamente ter sua transação bloqueada por segurança, se tentar transferir 100 mil reais em um dia. No Banco do Brasil: http://www.bb.com.br/pbb/pagina-inicial/bb-seguranca/limites-de-movimentacao#/

[8] Art. 14, § 3º, II do CDC

por Fabio Nery, advogado, OAB/SP nº 351539.

www.fnery.adv.br

f.nery@adv.oabsp.org.br

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